Rondando então em torno à árvore de espinhos, interroguei-a, sombrio e rouco: «Anda, monstro, diz! És tu uma relíquia divina com poderes sobrenaturais - ou és apenas um arbusto grotesco com um nome latino nas classificações de Lineu? Fala! Tens tu, como aquele cuja cabeça coroaste por escárnio, o dom de sarar? Vê lá... Se te levo comigo para um lindo oratório português, livrando-te do tormento da solidão e das melancolias da obscuridade, e dando-te lá os regalos de um altar, o incenso vivo das rosas, a chama louvadoura das velas, os respeito das mãos postas, todas as carícias da oração - não é para que tu, prolongando indulgentemente uma existência estorvadora, me prives da rápida da rápida herança e dos gozos a que a minha carne moça tem direito! Vê lá! Se, por teres atravessado o Evangelho, te embebeste de ideias pueris de caridade e misericórdia, e vai com tenção de curar a titi - então fica-te aí, entre essas penedias, fustigado pelo pó do deserto, recebendo o excremento das aves de rapina, enfastiado no silêncio eterno!... Mas se prometes permanecer surdo às preces da titi, comportar-te como um pobre galho seco e sem influência, e não interromperes a apetecida decomposição dos seus tecidos- então vai ter em Lisboa o macio agasalho de uma capela afofada de damascos, o calor dos beijos devotos, todas as satisfações de um ídolo, e eu hei-de cercar-te de tanta adoração que não hás-de invejar o Deus que os teus espinhos feriram... Fala, monstro!»
O monstro não falou. Mas logo senti perpassar-me na alma, aquietadoramente, com a consolante fresquidão da brisa de Estio, o pressentimento de que breve a titi ia morrer e apodrecer na sua cova. A árvore de espinho mandava, pela comunicação esparsa da Natureza, da sua seiva ao meu sangue, aquele palpite suave da morte da Sra. D. Patrocínio - como uma promessa suficiente de que, transportado para o oratório, nenhum dos seus galhos impediria que o fígado dessa hedionda senhora inchasse e se desfizesse... E isto foi, entre nós, nesse ermo, como um pacto taciturno, profundo e mortal.
Mas era esta realmente a árvore de espinhos? A rapidez da sua condescendência fazia-me suspeitar da excelência da sua divindade. Resolvi consultar o sólido, sapientíssimo Topsius.
"A Relíquia", de Eça de Queiroz
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